domingo, 5 de agosto de 2007

Construindo a organização biocêntrica

Hock (2003) em sua experiência de criação da VISA Internacional [1] chegou a seis elementos essenciais – propósito, princípios, participantes, conceito, estrutura e prática - integrantes do processo de formação de uma estrutura caórdica e que somente ganham substância e força quando compreendidos a partir do paradigma da complexidade.

O modelo organizado por Hock (2003) foi dirigido para organizações caórdicas, ou seja, formadas por diversas outras organizações com identidades próprias e mescladas pela organização caórdica, mas que todas as pessoas que a formam conduzem-se em busca de um propósito comum, de acordo com os princípios, os conceitos e a estrutura.

Os princípios são construídos pelos formadores da organização a partir de um propósito inicialmente por eles delineado; as pessoas convidadas a participar da organização deverão ser as comprometidas com os princípios e o propósito; o conceito surge de como se manifestam as relações entre todas as pessoas em busca do propósito, de acordo com os princípios; a estrutura refere-se à materialização do propósito, dos princípios, dos participantes e do conceito (realidade legal); e, por fim, a prática refere-se às deliberações, decisões e atos de todos os participantes da organização.

Estes elementos essenciais à formação da organização caórdica, quando consubstanciados e enriquecidos com os pressupostos e princípios da Educação Biocêntrica resultarão na construção de uma organização biocêntrica, como a seguir está exposto:

·Propósito: é uma afirmação clara e simples de intenções, cuja essência é o princípio biocêntrico, que identifique e una a comunidade como algo que valha a pena se buscar. É a expressão do que realmente as pessoas em conjunto querem se tornar, dando significado às suas vidas [2]. Vai além do que se pretende realizar. Tal afirmação determina com clareza absoluta, compreensão compartilhada e profunda convicção do propósito da comunidade. Todos na organização devem estar de acordo em relação ao que é realmente “propósito”, de modo a que os chavões sejam eliminados.

·Princípios: com conteúdos éticos e morais e sintonizados com princípios preconizados pela Educação Biocêntrica (biocêntrico, progressividade, vivencial, auto-regulação, transvaloração cultural, reciprocidade, entre outros), os princípios da organização biocêntrica referem-se a uma aspiração da comunidade, no âmbito do comportamento sobre a qual o todo e todas as partes irão se conduzir, na busca do propósito. Os princípios apenas descrevem a estrutura e o comportamento sem os prescrever e pertencem a duas categorias: princípios de estrutura e princípios de prática.

O propósito e os princípios são um conjunto vivo de crenças coerente e coeso, capaz de evoluir com a participação e o consentimento da comunidade e, portanto, deverão ser construídos a partir da mente e dos corações de cada um, sem exceção, para que sejam legítimos e estejam consonantes com as suas mais altas aspirações. Não contém instruções quanto ao método e nem são criados por líderes e/ou impostos como condição de participação. Deve-se, ainda, considerar ser inevitável que um princípio conflite com outro, porém nenhum deve ser eliminado em favorecimento de outro. Neste caso, busca-se uma decisão equilibrada, compreendendo-se que paradoxo e conflito são características inerentes a organizações com o grau de complexidade a que se propõe.

A construção do propósito e dos princípios é um processo que não deve ser exaurido em função de prazos, para que possa atingir seu potencial pleno. É um processo de diálogo para se chegar a um consenso sobre crenças e, portanto, tem muito mais a ver com transformação pessoal que organizacional.

·Participantes: a partir do momento em que o processo de estabelecimento do conjunto de crenças estiver completo, o grupo deverá iniciar a busca por pessoas e parceiros que possam participar da nova organização, de modo a que o propósito se realize de acordo com os princípios. Essa compreensão e vivência permite a aceitação e o respeito pela diversidade, percebendo em cada pessoa a sua singularidade, possibilitando uma maior e mais variada participação na mesma de pessoas e parceiros: na administração, na propriedade, nas recompensas, nos direitos e nas obrigações. As ações não ocorrem a partir de considerações sobre as condições existentes e sim, sobre significados e valores, transcendendo as práticas e os limites institucionais, como expresso por Hock:

Determinar que pessoas e instituições são necessárias à realização do propósito de acordo com os princípios faz ver como são estreitas e restritivas as instituições existentes em relação à complexidade e diversidade explosiva da sociedade e à natureza sistêmica de problemas ambientais e sociais aparentemente insolúveis (2003: 21).

Todos os membros do grupo de trabalho farão o possível para agir pelo bem da futura organização, sem enrijecerem-se, tentando aperfeiçoar o trabalho que começaram, atraindo uma diversidade de outras organizações e capacitando-as para sua evolução.

·Conceito: refere-se a uma questão essencial e difícil para uma organização em formação que é a visualização das relações entre todas as pessoas em busca de um propósito de acordo com seus princípios. É a percepção de uma estrutura, não enrijecida, que todos consideram eqüitativa, justa e eficiente (elegibilidade, direitos e obrigações). Segundo Hock (2003), esta fase é a mais problemática porque é nela que os modelos interiores suplantados costumam retornar a ameaçar o processo. Hock (2003) ressalta que, quando se aceita que as organizações na verdade são personificações conceituais da antiga idéia de comunidade e que existem apenas na mente, fica difícil imaginar todas as permutações e possibilidades de relações humanas. Mudar crenças e visões de mundo é algo que amedronta. Conceitos de relações podem ser codificados e, portanto, existir legalmente, minimizando dificuldades para mudanças efetivas.

·Estrutura: refere-se à materialização em documento de cunho legal do propósito, princípios, conceito e pessoas (contrato social, estatuto, certificado de incorporação, regulamentos, decretos, pactos de cooperação, enfim, os meios legais que regulam a convivência). É a criação das responsabilidades legais dos gestores, de acordo com o propósito e os princípios com sólida e responsável administração financeira, gerando novos conceitos de propriedade não dominadas pelos mercados monetários e que envolve todas as partes afetadas em deliberações e decisões livres do domínio de qualquer uma delas. A estrutura deve materializar um sistema auto-organizado com seus direitos protegidos e que seja livre da recentralização de poder e de riqueza. Portanto, é o contrato de direitos e obrigações entre todos os integrantes da comunidade, são os detalhes escritos e estruturais das relações conceituais como elegibilidade, propriedade, voto, métodos de direção.

·Prática: refere-se às decisões, deliberações e atos das pessoas envolvidas na comunidade sendo exercida, ressalte-se, por todos, respeitando a estrutura e de acordo com os princípios em busca do propósito. Dee Hock (2003) alerta que os participantes desta nova comunidade não devem ser vinculados a nenhuma prática pelos formadores da organização, por mais que pareça vantajoso, sendo sua responsabilidade dar vida à organização, de modo a que todos possam participar ativamente, com criatividade e eqüitatividade na escolha das práticas para que realizem melhor o propósito e para que realmente se incumbam delas. Todos são respeitados, tratados igualmente, com direitos e deveres iguais.

Os organizadores compreendem que estão no processo para articular num círculo aberto e agir como procuradores na concepção de uma organização mais em harmonia com o espírito humano e com o mundo natural, aliada às mais altas aspirações da humanidade e não para comandar e controlar.

Portanto, tal organização deve ser a expressão verdadeira e real da comunidade, como afirma Hock (2003: 18): “a organização do futuro será a personificação da comunidade baseada em propósito compartilhado, falando às mais altas aspirações das pessoas”.

O sucesso da implementação desse processo pode esbarrar em algumas dificuldades até certa medida contornáveis: problemas de comunicação, falta de recursos, apoio e compreensão dos outros e, em organizações já existentes, processos ineficazes de transformação.

A organização biocêntrica, assim pode ser qualificada, quando as pessoas que a compõem cuidam, cada um sempre com sentido coletivo, para que sua expressão (de si mesmas e as relacionais com os outros e com a organização como um todo), em todas as suas dimensões relacionais – física, emocional, psicológica, cultural, social, com o público, inter-organizacional, econômica, política, religiosa e, tantas outras –, seja sempre pautada no belo, no saudável, no que constrói, no que alegra, no que integra, no que fortifica, nas suas mais altas aspirações enquanto ser humano, enfim, na dança da vida.

Esse modelo de organização promove constantemente o diálogo que dinamiza o saudável, o que potencialmente existe de bom. Nela aprende-se a falar de si na relação com o outro; aprende-se a olhar o outro em toda sua diversidade e inteireza e respeitando-o por isso mesmo. É aprender a ver o outro em sua essência. Não é necessário técnica, mas presença. É dizer o que se pensa com serenidade, sem ameaças. É buscar o vínculo.

Esta organização é um eterno vir-a-ser que não se enrijece. Ao contrário, é flexível e não se rege por um destino ou por determinado resultado.

Na organização biocêntrica todos têm cuidados em todas as suas dimensões de expressão para uma organização saudável. Nela a pessoa é considerada como um todo em que elementos como afetividade, emoções, inteligência, movimento e espaço físico encontram-se no mesmo plano, apesar das distinções existentes. Nela se constrói um conjunto de saberes e soluções eficazes para situações variadas, de acordo com os princípios em busca do propósito.

A pessoa é que conduz seus processos de formação tornando-os legítimos. A organização biocêntrica serve a um projeto interno construído por todos e como meio de também contribuir com uma sociedade mais justa, inclusiva e que respeite a vida em todas as suas formas.

Como é formada a partir de um propósito compartilhado, propõe a congregação de cidadãos planetários, solidários, éticos, consonantes com as mais altas aspirações do ser humano e tornando-os aptos a superar os desafios dos tempos atuais.

A experiência de Hock (2003) à frente da VISA e da Aliança Caórdica lhe permitiu constatar que a este tipo de organização se juntarão mais e mais pessoas certas e necessárias ao seu sucesso, pois têm propósito, princípios, conceito e estrutura claros sendo a prática altamente focalizada e eficiente porque libera o espírito, o comprometimento e a engenhosidade. O propósito, é na verdade, realizado além das expectativas, gerando mais confiança e colocando em questão o propósito e princípios originais, ampliando-os, enriquecendo-os e levando a organização a uma evolução numa espiral ascendente, como afirma Hock:

Um propósito ampliado e enriquecido vai ampliar e enriquecer em conceito uma espiral ascendente cada vez mais ampla de complexidade, diversidade, criatividade e harmonia – a evolução, para usar o termo certo (2003:25).

O lucro que é o objetivo nas organizações tradicionais, na organização biocêntrica é conseqüência. Pela experiência demonstrada da VISA Internacional e de outras empresas formadas com a mesma estrutura de organização caórdica, segundo Hock (2003), o lucro passa a ser um convidado que constantemente bate à porta pedindo para entrar.

No caso de organizações hierárquicas já existentes, limitadas pela monetização institucionalizada, como afirma Hock (2003), o processo de atualização para uma organização, essencialmente coletivas e de cooperação, como a caórdica ou a biocêntrica, deverá ser bem diferente, sendo, no entanto, igual a essência da reconcepção, em virtude da cristalização da cultura organizacional.

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[1] A VISA Internacional com menos de uma década de criação já era propriedade de 22 mil bancos-membros que, ao mesmo tempo em que competem harmonicamente entre si por 750 milhões de clientes, também cooperam entre si honrando transações mútuas que chegam a um valor anual de 1.250 trilhão de dólares, ultrapassando fronteiras, culturas diversas e diferentes sistemas monetários (Hock, 2003).

[2] Em todas as dimensões e não somente profissional.

Fonte:
SAMPAIO, Irene Nousiainen. Organização Biocêntrica - emergência de um novo paradigma na administração. Fortaleza, 2005. 116 p. Monografia (Especialização em Educação Biocêntrica - A Pedagogia do Encontro) –
Universidade Estadual do Ceará.

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