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Como comentado no início deste trabalho, com as primeiras experiências realizadas por Rolando Toro, a partir de 1965, com doentes mentais do hospital psiquiátrico de Santiago do Chile, utilizando a dança como instrumento de humanização da medicina, o mesmo observou que algumas músicas facilitavam estados de transe, aumentando as alucinações e os delírios e que dissociavam-se ainda mais quando faziam certos movimentos. A partir de então passou à seleção de uma série de músicas e danças que reforçassem o sentimento da própria identidade, resultando em manifestação pelos doentes de melhor discernimento da realidade, diminuindo as alucinações e aumentando a comunicação deles.
Observou também que os exercícios, dependendo do tipo, levavam a um forte sentimento de identidade (consciência de si mesmo) ou à regressão (sentimento de diluição da identidade). Posteriormente, observou que pessoas não psicóticas, mas estressadas, que sofriam de doenças psicossomáticas, melhoravam sensivelmente quando faziam exercícios que induziam à regressão.
01.02. A sistematização da teoria
Com suas observações, Toro, após vários anos de pesquisas, concluiu que estados de identidade e de regressão são complementares e se sucedem, num continuum. Assim, no transe para o estado de regressão, a pessoa tende a perceber-se como parte da totalidade do universo, em especial na "saída" da regressão, e no transe para o estado de identidade, ela passa à consciência de si como centro de percepção do mundo. Essas conclusões marcaram o início da formulação do atual modelo teórico da Biodança.
Na Biodança, a modulação (transe) entre os estados de identidade (consciência de si mesmo), cujo ponto de partida é a presença, e de regressão (a ida ao mais antigo para refazer a singularidade) é feita por meio de exercícios vivenciais de contato e de comunicação em grupo, com música e consignas, resultando em aumento de complexidade do ser, em conquista de autonomia, auto-regulação e em fortalecimento da Identidade.
Com o aprofundamento das pesquisas realizadas por Toro foi acrescentado um eixo vertical contemplando as cinco linhas de vivência que representam a expressão e a integração do potencial genético humano.
O pressuposto do princípio biocêntrico, a partir do qual se desenvolve toda a teoria da Biodança, está expresso no modelo teórico, nas condições cósmicas iniciais para a gênese da vida que se produzem no limite do caos e no princípio de vida cósmica.
Segundo Toro (2002), o universo, com todos os seus processos altamente complexos - caóticos - de transformação possui características constantes para geração da vida - regulação cósmica.
Ainda segundo Toro (2002), o caos é o lugar mais propício para geração da vida, de sistemas complexos, uma vez que é o espaço que oferece maiores possibilidades de interação entre suas substâncias. As situações de caos contém princípios para situações de ordem e a vida é um movimento do caos para a ordem, não realizado de modo linear, mas de um constante movimento pulsante entre caos e ordem, como estrutura dissipativa, cujo desenvolvimento acontece pela transtase de seu aprendizado.
Os estudos sobre sistemas vivos de Ilya Prigogine e outros cientistas nos falam que o universo possui uma programação orientada para a vida que favorece a multiplicidade dos fatores iniciais que conduzirão à criação dos sistemas complexos, adaptativos, capazes de autogerarem-se (autopoiese) e de evoluir (biomoléculas, proteínas, protozoários, células, etc - sistemas vivos). Estes sistemas são também caracterizados pelo equilíbrio e gerados pela associação de elementos no “caldo cósmico” em movimentos homeostáticos (equilíbrio do sistema vivo) e transtáticos[1] (equilíbrio evolutivo).
Como vimos, as condições iniciais para geração da vida se dá por meio de uma regulação homeostática entre matéria e energia. Tal regulação cósmica acontece nos aspectos estruturais e energéticos do universo como: massa, densidade, pressão, temperatura, estrutura atômica, número de elementos, leis de combinações entre eles[2], a estrutura do DNA e a ação das radiações cósmicas e da gravidade.
O atual modelo teórico de Biodança, proposto por Toro, compõe-se de duas espirais[3] sobrepostas: uma indica o contexto biocósmico no qual a vida se origina, e a outra, não separada, mas, ressaltada, revela o "caminho" de desenvolvimento da espécie humana, sabendo-se, que não há uma trajetória rígida, e sim, projeções direcionais, contempladas nas aberturas aos processos universais de gestação da vida.
A referência ao desenvolvimento do ser humano no modelo teórico parte da proposta de pulsação entre duas tensões opostas: uma centrípeta (aumento da vivência da identidade, da consciência de si mesmo) e uma centrífuga (vivência de regressão, de dissolução na totalidade ou fusão com o cosmos), cujas aberturas promovem discretas transformações a partir de uma constante reorganização biológica, provocadas pelas vivências integradoras para dinamização saudável dos potenciais genéticos, levando ao desenvolvimento evolutivo do ser humano.
Esse desenvolvimento da espécie é possível pela gravação genética de nossa filogênese (memória do desenvolvimento evolutivo da espécie - dela deriva a hereditariedade genética de cada pessoa). O ser humano atual é um ser gestado na história do desenvolvimento da espécie, desde seu aparecimento até nossos dias, que traz em si o contexto natural da espécie humana e do qual deriva a hereditariedade genética da pessoa. Portanto, no modelo teórico, a filogênese encontra-se como um dos pontos iniciais que acompanham o trânsito do desenvolvimento humano, juntamente com os inconscientes vital, pessoal e coletivo.
A ontogênese humana vai se criando em consonância com a filogênese e por meio da expressão dos potenciais genéticos[4] da pessoa que são dinamizados no decorrer da experiência e resultantes da ação dos ecofatores. Os potenciais genéticos são todas as potencialidades contidas nos cromossamos e que são herdadas geneticamente. Como são potencialidades, dependendo da estimulação podem vir a expressar-se ou não.
No modelo teórico, como pode-se ver em anexo, tal ontogênese está representada por um eixo vertical que nasce do potencial genético, logo após a filogênese.
Segundo TORO (2002:84), as estruturas orgânicas, as funções vitais, a forma e a constituição corporal expressam as potencialidades genéticas sendo as emoções, os sentimentos e as vivências suas expressões psicológicas, embora estudos recentes da neurociência apontem as emoções como expressões biológicas.
Após o nascimento, os seis primeiros meses de vida deixarão uma impressão de acordo com o aprendizado das primeiras respostas dadas aos estímulos externos e internos, chamada de protovivência, a qual determinará a expressão dos potenciais genéticos daí em diante. Assim, um bebê que não é acariciado terá no futuro sua afetividade comprometida, ou um bebê que tenha sido imobilizado terá sua vitalidade profundamente afetada. É sobre a impressão deixada pelas protovivências que as vivências posteriores se desenvolverão.
Com base ainda em suas pesquisas, TORO (2002:84) encontrou correspondência entre a expressão das potencialidades genéticas e as principais aspirações humanas, chegando a cinco canais biológicos de expressão às quais denominou linhas de vivência.
Abaixo apresentamos as cinco linhas de vivência e sua correspondência com as protovivências, citadas em TORO (2002) e em GÓIS (2002), cujas qualidades estão organizadas no Quadro 1 ao final deste trabalho:
a) Vitalidade
A protovivência do movimento reflete a vida. A vida é movimento. A morte é estagnação, rigidez. Quando o feto se move é sinal de que há vida. Seus movimentos vão se ampliando com o tempo, na alternância entre mover-se e dormir, movimento e repouso, inibição e excitação.
A linha da vitalidade refere-se ao ímpeto vital, à alegria de viver, à saúde. Esta linha é gerada a partir de funções de regulação da atividade e do repouso e que mantém a homeostase, compreendendo os instintos de conservação, de fome, de sede, respostas de luta e fuga. São indicadores de vitalidade: resistência ao esforço, vitalidade do movimento, estabilidade neurovegetativa, potência dos instintos e o estado nutricional. Características externas que podem expressar a vitalidade: facilidade para rir, agilidade dos movimentos, som e expressão da voz, brilho e intensidade do olhar, harmonia e vigor dos gestos.
b) Sexualidade
A protovivência do contato é essencial para o desenvolvimento do ser humano. É no contato que nossas interações nervosas vão se ampliando e complexificando cada vez mais, realizando ligações neurais cognitivas complexas. Dentre suas funções, o contato gera a sensação de proteção e desenvolve a identidade, especificamente no que se refere à sensualidade e à genitalidade. Um bebê que é tocado, acariciado encontrará caminhos de crescimento saudável.
A linha da sexualidade envolve o prazer sexual, reprodução, vínculo sexual, prazer, sensualidade, contato; compreende o instinto sexual, o orgasmo, o desejo e a busca do prazer, as múltiplas emoções envolvidas na satisfação sexual, cuja finalidade biológica é a reprodução. Um intenso desejo sexual mobiliza o organismo por inteiro; é a sensibilidade global aos estímulos do prazer (pelos alimentos, pelo banho, pela brisa, pela chuva, pelo carinho, pelo beijo, pelo toque terno, pela dança, pela música, etc.)
c) Criatividade
A criatividade se desenvolve a partir da protovivência da expressão. Um bebê que expressa-se no mundo (sorri, chora, emite e cria sons, pega coisas, movimenta-se por todas as partes, coloca coisas na boca), cada vez mais se apropria de sua realidade e a transforma.
A linha da criatividade diz respeito à inovação, construção, imaginação, instinto de exploração; somos ao mesmo tempo, a mensagem, a criatura, o criador; incentivo aos impulsos criadores naturais - "nossa grandeza se encontra em nossa vida"; a natureza é um eterno ato criativo.
d) Afetividade
A protovivência da segurança refere-se ao que todo ser vivo busca: alimento e proteção, que garantem a sobrevivência de si, da espécie e da vida. No caso do ser humano, dado sua complexidade neurológica, a criança demora em adquirir autonomia a fim de que ela mesma possa nutrir-se e buscar sua própria segurança.
A linha da afetividade refere-se ao amor, amizade, altruísmo, empatia; relacionada ao instinto de solidariedade dentro da espécie, capacidade de empatia, aos impulsos gregários, às tendências altruístas e aos ritos socializantes. Difere da vivência (o aqui e agora) em complexidade e por permanecer ao longo do tempo; implica a participação da consciência, da memória e da representação simbólica; afetividade é um estado de afinidade profunda para com os outros seres humanos.
e) Transcendência
A protovivência da harmonia advém da inibição, do repouso, do sono que produz um estado de quietude, silencia e indiferenciação. Desde enquanto feto, a criança necessita de um ambiente tranqüilo e restaurador que lhe permita amadurecer e crescer. As situações de diferenciação para o mundo do bebê devem surgir progressivamente, aos poucos, sem ansiedade.
A linha da transcendência é a nossa ligação com a natureza, o sentimento de pertencer ao universo; envolve a procura de harmonização com a natureza em sua totalidade; é uma função biológica e culmina na experiência suprema de identificação com o universo. O impulso místico é visceral, sendo a experiência mística a provocadora de profundas transformações na homeostase, no nível orgânico e no nível existencial; refere-se à superação da força do próprio Eu e à possibilidade de ir mais além da autopercepção, para identificar-se com a unidade da natureza e a essência da pessoa; sensação de ligação íntima com a natureza e com o próximo.
As potencialidades genéticas podem ter, ou não, oportunidade de expressão, dependendo da atuação dos eco-fatores que são os estímulos gerados no contato com o meio ambiente.
O processo culminante da Biodança é a integração para a qual se dirige o desenvolvimento das linhas de vivência e consiste na interação recíproca, dinâmica e criativa gerada no decorrer da vida da pessoa e que se produz na expressão das cinco linhas de impulsos inatos.
A alternância natural dos estados de consciência da pessoa está representada pelo continuum identidade-regressão e expresso no modelo como o eixo horizontal cujos dois pólos, identidade (essência do ser) e regressão (passagem para o indiferenciado) formam um circuito em eterno movimento que evolui em espiral em direção à integração.
O modelo também contempla os estratos do inconsciente: pessoal, coletivo e vital, possuindo, este último uma grande autonomia, mesmo estando ligado aos outros dois, e mantém relação direta com o inconsciente coletivo e com as leis cósmicas.
O modelo teórico da Biodança vem experimentando modificações e ajustes ao longo dos últimos 40 anos.
Segundo Toro (2002: 73), o modelo teórico de Biodança atual é um sistema semi-aberto em que é “concebido como um sistema fechado de relações homeostáticas, que, porém, apresenta aberturas sutis a novas possibilidades de equilíbrio[5], representadas pelo contato interpessoal, em um processo aberto de co-criação e de integração” - um sistema complexo adaptativo.
Rolando Toro considera o modelo teórico da Biodança como um modelo do ser humano cósmico por abordá-lo em todas as suas dimensões: biológica, psicológica e cósmica.
A visão da Biodança é a visão do homem como ser no mundo, como criatura cósmica em completa conexão com a vida, com o Todo.
[1] Transformações discretas de caráter evolutivo, a partir de uma constante reorganização biológica provocada pelas vivências integradoras, cujo suporte é o potencial genético.
[2] Leis que possibilitam a formação de moléculas e das proteínas.
[3] Estão separadas apenas por questão metodológica, porém, são, de fato, integradas - a teia da vida.
[4] São as potencialidades herdadas geneticamente por cada um, as quais podem vir a manifestar-se ou não, ou seja, são as possibilidades inatas que trazemos em nosso ser (nos cromossomos) e que são ativados conforme o grau de estimulação recebidos do ambiente.
[5] Transtase.
Um comentário:
Parabéns pela iniciativa, o Blog está muito legal!
Um abraço dos biodanceiros de Santa Cruz do Sul e um convite para visitarem o nosso Blog sobre Vida Sustentável: http://vidasustentavel.wordpress.com
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